23 de Maio de 2014

A vida que a literatura me deu

Posted in Ler faz crescer às 18:26 por sidneif

Por ANIELIZABETH*

"Camille Monet e uma criança no Jardim do Artista em Argenteuil"(1875)

“Camille Monet e uma criança no Jardim do Artista em Argenteuil”(1875), pintura de Claude Monet (1840-1926).

Nasci no Rio de Janeiro em 08/11/1980 e, de família pernambucana, já morei em Recife e Caruaru. Quando criança, minha brincadeira favorita era inventar histórias desenhadas. Nunca fui a melhor desenhista da classe. Sabe aquelas crianças que copiam com perfeição os personagens famosos da televisão? Ou aquelas que fazem super caricaturas dos colegas e professores? Pois é… Nunca fui uma delas.

Adorava criar histórias através dos meus desenhos, desde sempre. Quando brincava de Barbie, por exemplo, primeiro escrevia a história. Era uma espécie de roteiro, ou storyboard¹ que fazia de forma muito intuitiva, sem nem saber o que era uma coisa e outra. Depois desenhava o cenário e as roupas, que por fim confeccionava com massinha e tecido. Eu não tinha os acessórios da boneca. Tudo era criado por mim, a partir da minha experiência de leitora, pois as brincadeiras eram baseadas, invariavelmente, em histórias que lia ou ouvia.

Livros que me arrebataram:

capa A carneSou filha de um comerciante, o qual estudou até o que hoje chamamos de 6º ano (se muito!), e de uma professora do Ensino Fundamental. Desde muito pequena, lembro-me de uma imensa e eclética estante de livros que havia na minha casa. Essa estante me acompanhou até os 10 anos de idade, quando minha família resolveu voltar para o Rio de Janeiro, passando antes por Recife e deixando tudo para trás. Dessa estante tirei muito da minha experiência de leitora. Era uma profusão de livros, revistas e diversos outros suportes de leitura. Meus pais liam muito e também nos contavam histórias: lidas ou narradas oralmente. Uma imagem marcante que tenho do meu pai é dele lendo jornal ou levando livros para o banheiro. E lá em casa não havia censura. Lembro, por exemplo, que aos 7 anos eu tinha verdadeiro fascínio pelo livro A Carne, de Júlio Ribeiro (1845-1890) Leia o resto deste artigo »

9 de Maio de 2014

Ler na voz materna

Posted in Ler faz crescer às 16:50 por sidneif

Por ALFREDO FRESSIA*

gabrielleetjeanaugusterenoir

“Gabrielle et Jean” (c. 1895-1896), pintura de Auguste Renoir (1841-1919).

Meu ingresso no mundo dos livros aconteceu muito aos poucos. Começou, talvez aos meus quatro anos, mediado pela voz da minha mãe, que lia histórias para mim –e isso deve, ou deveria ocorrer com quase todas as crianças. As primeiras de que eu me lembro? As do livro Coração de Edmondo de Amicis (1846-1908) –aliás, “Corazón”, já que ela lia em espanhol.

Lembro bem da última história lida por ela nesse livro: chamava-se “De los Apeninos a los Andes”, e terminou em desastre. A criança chorava tanto que a mãe parou a leitura, assustada. E a criança chorava mais ainda porque queria o desenlace dessa história de um menino migrante.
Dessas aventuras com livros, mediadas pela voz materna, tiro duas conclusões: 1. para a criança que eu fui, o menino de De Amicis prefigurava o migrante que eu seria um dia (e entrava em diálogo com as migrações dos meus ancestrais). E 2. até hoje eu desconfio da “literatura para crianças”. Penso como Jorge Luís Borges (1899-1986): criança lê como pode o que todos lemos (como podemos, também). A “literatura para crianças” é uma invenção post-freudiana, quando se cria a personagem Criança, com características, etapas de evolução etc. Se as crianças convivem tão bem com essas histórias de terror que vêm da tradição européia, Andersen e companhia, por que não deveriam ser expostas à literatura lida pelos adultos?
Falei da leitura mediada pela voz materna. Pergunta: eu “lia” quando minha mãe lia para mim? Penso que sim. É verdade que aos três ou quatro anos eu ainda não sabia decifrar as letrinhas, mas “ler” é uma atividade que vai além de um chato exercício de exegese de letrinhas.
A etimologia do verbo ler é significativa. “Legere”, em latim, quer dizer “escolher” (e também vêem dali palavras belas como inteligência e elegância), mas fiquemos na idéia de escolha. Eu escolho quando leio e escolho quando ouço. O menino que ouve a mãe ler também lê. Em fim, eu sei que eu lia na voz da minha mãe.
Depois vieram as sopas de letras. Os livros para crianças. Eu achava chatinho. Lembro mais das histórias com desenhos. Um livro sobre a vida cotidiana na China, os manuais da escola, brincar de ir lendo as propagandas na rua. Eu lia sem grande prazer os relatos moralizantes da escola, com meninos heróis, sei lá. E os livros sem imagens eu descartava, nem pensar. Um do Emilio Salgari (1862-1911), grosso, ilegível. Eu usava para escrever por cima, fazer rascunhos de exercícios escolares.
Para a criança que eu fui, o milagre aconteceu com poemas. Era uma “Historia de la Literatura Española”, e dizia “con Antología”, um livro para normalistas argentinas que caiu na minha casa como um meteorito. Foi uma revelação. Primeiro a surpresa de ver que o idioma podia tomar a forma dos versos, ficar organizado em grupos que se chamavam estrofes. E que eram como música! Rimas, assonâncias, uma musiquinha que eu não sabia que existia, e que estava na língua, esse objeto no qual eu nunca reparara…
Aquele menino começou a ler sonetos clássicos. Não importa o que ele lia/escolhia nos sonetos. (Devia ler/escolher o que um menino de tenra idade pode entender, é claro). Mas ele os lia, e ia mais longe, memorizava. Se eram música, como não guardá-los na memória? Canções cantam-se, poesias dizem-se. Ou se recitam, mas eu nem sempre gostava de uma senhora que “recitava” poemas na rádio que minha mãe ouvia naquele Montevidéu dos primeiros anos ’50. Era tarde na noite. Depois da rádio-novela, vinha essa recitadora, com poemas ditos com ênfase, antes do programa “Un piano en la noche”, durante o qual eu caía no sono.
Sempre pensei que, se depois eu fui poeta, isso se deve aos poemas que eu lia, olhava, escolhia, dizia em criança. Pode ter sido o contrário, a saber, se aquele menino sentia-se tão interpelado pelos poemas que apareceram na casa, isso se deve ao fato de ser ele poeta. Não sei. É possível ser poeta avant la lettre? Mas se eu aceito que minha identificação com o menino migrante de D’Amicis vinha das migrações que me cercavam e que eu mesmo protagonizaria, por que não poderia ser um menino poeta? Assim: menino-poeta-que-ainda-não-escrevia. Ou escrevia sem escrever?
Ah, e um último detalhe. Fala-se ultimamente sobre a morte do livro, a sua substituição pela tela do computador, pelo e.book etc. É possível, ainda que eu pertença ao mundo analógico, não me oponho à idéia de novos “suportes” para a leitura. Que minha história –a de tantas crianças que ouviram livros- sirva para lembrar esse “suporte” nunca mencionado: a voz materna.

*Alfredo Fressia (Montevidéu, 1948) reside em São Paulo desde 1976. A editora Lumme de São Paulo publicou no Brasil três obras de Fressia: “Canto desalojado” (2010), “Destino: Rua Aurora” e a plaquette “El Futuro” (2012).